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LUZ, CÂMERA, AÇÃO

Gosta de cinema? Leia a resenha do drama biográfico "O Contador de Histórias"

Nesta edição do quadro "Luz, Câmera, Ação", o escritor Felipe Figueira traz o filme que é baseado em fatos reais da vida de Roberto Carlos Ramos.

Publicado em 03/03/2024 às 13:30
Atualizado em

(Foto: Reprodução)

Nesta edição do quadro "Luz, Câmera, Ação", o professor e escritor Felipe Figueira fala sobre o filme "O Contador de Histórias"


Por Felipe Figueira

O filme “O contador de histórias”, de Luiz Villaça, conta a história real de Roberto Carlos Ramos (interpretado por vários atores: Daniel Henrique, criança; Paulinho Mendes, adolescente; e Cleiton Santos, adulto), que passou boa parte da infância e início da adolescência na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM), em Belo Horizonte, na década de 1970.

Ao acompanhar a história triste, mas magnífica de Roberto Carlos, foi possível lembrar de outras duas: 1ª Carolina de Jesus e 2ª Roberto da Silva.

Carolina de Jesus é uma importante escritora brasileira, que viveu na favela do Canindé, em São Paulo, entre as décadas de 1950 e 1960. A sua luta pela sobrevivência está duramente relatada no livro “Quarto de despejo: Diário de uma favelada”. E por que a história da escritora faz lembrar a do protagonista do filme? Porque ambos viveram na miséria, e Carolina, durante o período de criação dos filhos, também passou pelo período da chamada “doutrina da situação irregular”, que era uma doutrina que não considerava as crianças e os adolescentes enquanto sujeitos de direitos, mas só os contemplava quando estavam em situação irregular: diante da carência ou da delinquência.

Quanto a Roberto da Silva, esse foi um célebre professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), falecido em 2023 e que eu tive a honra de entrevistar. Quando criança, a sua mãe foi destituída do poder familiar devido a problemas mentais e à extrema pobreza, e seus quatro filhos ficaram sob os cuidados do Estado, na forma da FEBEM. Professor Roberto da Silva passou a infância e a adolescência institucionalizado, mas, como ele bem demonstrou em sua dissertação de mestrado “Os filhos do Governo”, o que ele encontrou na FEBEM, a começar consigo mesmo, foi a formação de uma carreira criminal, de modo que indevidamente a FEBEM foi associada a lugar de criminosos. O próprio Roberto da Silva foi diversas preso, inclusive na Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida como Carandiru. Para a sua sorte, a sua vida mudou, como a de Roberto Carlos, e ele pôde estudar até ao ponto em que se tornou professor da USP.

Ao longo do filme “O contador de histórias” se vê a trajetória de um menino que tinha tudo pra ser morto nas ruas, pois ele cometia pequenos delitos, usava drogas e se envolvia com pessoas que viviam na marginalidade (exemplo: “Cabelinho de Fogo”, interpretado por Victor Augusto da Silva). Esse cenário é representado por um belo e trágico diálogo que aparece no final da película:

Pérola: O Roberto teve sorte.

Margherita: Não foi só sorte. Foi trabalho. Eu sabia que um menino de 13 anos não pode ser considerado irrecuperável.

Pérola: O seu trabalho é fazer o papel de mãe. Você levou o menino para casa, deu roupa, comida, carinho. Eu ia adorar cuidar de cada criança como se ela fosse única, mas não é. O que se faz aqui é política pública. Isso aqui é uma guerra.

Margherita: Uma guerra que vocês estão perdendo.

Pérola: Ela já começou perdida. Quando a mãe chega aqui e entrega o filho, é porque ela já perdeu a guerra para a pobreza. Ela espera que a gente faça milagre. A gente até tenta. Mas, milagre é uma coisa que só acontece de vez em quando.

Mas, quem são “Pérola” (Malu Galli) e “Margherit” (Maria de Medeiros)? Pérola é a diretora de FEBEM que “cuidava” de Roberto. “Cuidava” entre aspas, pois onde não há amor não há de fato cuidado. Já Margherit era uma pedagoga e pesquisadora francesa, que estava no Brasil para pesquisar, dentre outros assuntos, a FEBEM. A pedagoga, ao se deparar com Roberto Carlos, é movida por uma poderosa curiosidade por sua história e é a partir disso que se dá a revolução na vida do garoto.

O filme de Luiz Villaça é poético e caminha entre “o real e o imaginário”, para me valer de conceitos caros a Rogério de Almeida, também professor da USP e um dos maiores estudiosos de cinema no Brasil. Ao contar a sua história para Margherit, o adolescente Roberto Carlos imaginou muitas situações, o que não significa negar a dureza do dia a dia, e sob sua perspectiva peculiar está a poética da película.

O Brasil teve até hoje três grandes códigos menoristas: Código de Mello Mattos (1927), Código de Menores (1979) e Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990). Os dois primeiros tratavam os menores sob a perspectiva da situação irregular, já o ECA tem por base a doutrina da proteção integral, que se encontra exemplificada no artigo 227 da Constituição Federal de 1988: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” Essa mudança positiva de paradigmas deve ser compreendida e promovida, não tripudiada e destruída.

A história de Roberto Carlos vale a pena ser conhecida, seja porque possui um caráter transformador, na medida em que toda pessoa, sob o devido amparo, pode se “recuperar”, seja porque a história contada até hoje segue sendo a de milhares pelo Brasil e pelo mundo. A questão é: o que fazer? Quanto a isso, o filme traz vários problemas e várias respostas, sugerindo a todos uma cultura de paz. Se só crimes e mortes forem postos no pedestal, onde ficará a cultura de paz? É preciso pensar sob outra perspectiva. É preciso.


“O contador de histórias” (2009) está disponível no YouTube. Tempo de duração: 1h50 minutos. Classificação indicativa: 12 anos.


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